Dia 14 de 21: Viagem

And
3 min readNov 3, 2021

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“Escreva sobre um lugar que você gostou muito”

Pensei em começar falando sobre quando eu fui até Porto Seguro conhecer o mar, ou como imergi tanto no primeiro livro que li, que após ele renasci repleta de empatia e com uma nova visão sobre o mundo.

Mas lembrei de uma viagem rotineira que fazia em minha infância aos finais de semana.

Quando você ouve falar em São Paulo, pelo menos com as pessoas de fora que já conversei, sempre pensam em “baladas”, “eventos intermináveis”, “Liberdade, Paulista, Augusta…”, “assaltos e violência”.

Esses dois itens são o prato cheio de quem nasceu nos extremos da cidade que não dorme, como eu, que sou cria do fundão da zona sul; Grajaú e Pedreira compõem a mistura da minha marmita, mesmo que hoje me esconda ao lado do bairro nobre da Saúde.

Em 1999, no auge dos meus 4 anos, meus pais resolveram se embrenhar em Marsilac, último bairro da zona sul há cerca de 2 horas do centro, e também há uma eternidade do município do Pedreira, mais conhecido como lar da minha avó materna.

Todos os sábados pela manhã, ou às sextas a noite, cruzávamos 2 km de estrada arenosa a pé, até o terminal central de ônibus do bairro, que se constituía apenas de um ponto.

Na época pegávamos a linha Terminal Santo Amaro — Marsilac, que talvez nem exista mais. Para minha mãe era uma viagem tortuosa, para mim, no pico da minha curiosidade, era incrível.

Marsilac é um distrito interiorano, não carrega nada do clima da capital, com suas linhas de trem de livre acesso, cachoeiras turísticas e completamente coberto pela Mata Atlântica, considerado um bom destino para quem quer fugir da correria.

Eu entrava naquele ônibus, tão antigo que deveria ter 4x a minha idade, e através da janela apreciava; casas de veraneio isoladas em montanhas, “será que mora alguém lá?” (sim, morava, mas isso fica pra outra história), eventuais cobras na “rodovia”, o ar de uma magnificência (que quando me mudei, na mesma semana descobri ter diversas alergias a cidade).

Eu era tão inocente que me encantava em ver a mata verde se transformar em arranha-céus.

A única parte da viagem que não aprovava era quando chegávamos perto do Grajaú, ainda na Teotônio Vilela, quando ao sermos abraçadas pelo abafamento da metrópole minha mãe trocava minha roupa; Marsilac é uma terra fria, atingida por uma neblina digna de filmes de terror.

Retornávamos aos domingos durante a noite, mas era uma viagem vazia em detalhes e sem presentes visuais.

Na época, nós mal tínhamos comida no prato e, para minha sorte, eu ainda não pagava passagem. Apesar das dificuldades me sentia privilegiada, eu vivia no tempo-espaço onde morava diante da natureza; passava a semana subindo em árvores e sujando meus sapatos de barro, enquanto corria pela fazenda; e aos fins de semana era transportada para o “futuro”, onde jogava video-games, passava por shoppings e, quando tinha muita sorte, ganhava um Mc Lanche Feliz.

Eu achava que o tempo de cada lugar era diferente, mas a única diferença era a regalia de ter uma vida dupla e ter aprendido a valorizar toda a essência do universo que me foi oferecido, durante 6 meses e 1 aniversário, que me marcam por essa vida inteira.

Belas lembranças me restaram de quando tinha a liberdade de transitar entre esses dois mundos.

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And

Escrevo como se fosse morrer amanhã (e morro um pouco todos os dias)